Campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde
Em 2001, visitei o Museu do KGB em Vilnius, impressionou-me tanto que não voltei a um sítio do género até 2022, nem quando fui a Cracóvia, Berlim ou Viena. Há poucas palavras para descrever este sítio inumano e vergonhoso, por isso optei por adaptar os textos que estão expostos.
O campo de concentração do Tarrafal fica na ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde, e está gravado no imaginário dos portugueses, angolanos, guineenses e cabo-verdianos com a inscrição do campo da morte lenta.
O regime salazarista, era por natureza um regime totalitário, antiparlamentar e antiliberal. Este campo foi uma solução do regime para silenciar os adversários políticos.
Erguido por força do decreto nº 26.539, de 23 de abril de 1936, a Colónia Penal do Tarrafal recebeu os seus primeiros presos, num total de 56, a 29 de outubro do mesmo ano, tendo funcionado até 1956. Nesta primeira fase, serviu para receber os antifascistas portugueses, entre eles, Bento Gonçalves e Mário Castelhano, líderes do Partido Comunista Português (PCP) e da Confederação Geral do Trabalho (CGT), respetivamente.
Em 1962, o estabelecimento abriu de novo, com o nome de Campo de Trabalho Chão Bom e, desta vez, destinado a encarcerar anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. 340 antifascistas e 230 anticolonialistas chegaram a estar presos no campo.
Para a materialização do campo de concentração, o Estado Novo contou com a ajuda da sua polícia política (PIDE, inspirada na Gestapo, que funcionava como instrumento de censura e repressão, destinando-se a garantir a integridade do regime e a combater os movimentos independentistas.
O modus operandi da PIDE passava por tornar duras e deploráveis as condições de existência dos deportados. Assim, os maus tratos, o isolamento, as humilhações, o trabalho forçado, as torturas e a alimentação deficitária constituíram amostras do grau de severidade, dentro de uma panóplia de métodos à disposição desta polícia política.
Durante os mais de 30 anos de funcionamento, deixou marcas físicas e psicológicas irreversíveis naqueles que ousaram opor-se à ordem político-social vigente do Estado Novo.
A 1 de maio de 1974, na sequência da Revolução dos Cravos, de 25 de abril do mesmo ano em Portugal, o campo abriu as portas, desta vez, para restituir a liberdade e fechou-as para guardar para sempre um símbolo de resistência contra dos ditames do regime salazarista, sendo um sítio de memória dolorosa, testemunho do custa da liberdade.
Tarrafal, porquê?
A eleição do Tarrafal para abrigar o campo de concentração não foi um ato aleatório. Desde os primórdios do seu achamento, Cabo Verde serviu como "país" de degredo/ deportação, como forma de povoamento dos locais ermos.Contudo, a deportação metódica dos indesejados políticos e ideológicos praticada com a ditadura militar e, posteriormente, com o regime salazarista, revestiu-se de contornos macabros e desumanos.
Dentro de uma prisão natural que a própria ilha encerra, foi construída outra prisão física, amuralhada, sujeita a regras disciplinares. O isolamento, que dificultava qualquer tentativa de evasão e de contágio da população circundante, a facilidade de vigilância e a fiscalização, foram os critérios de eleição. A escolha da localidade Chão Bom, tem a ver com o seu espectro desolador e árido, provocando no prisioneiro um sentimento de desanimo e desencorajamento.
Para piorar, a escolha recaía no Tarrafal de Santiago lançava uma certa confusão nos familiares dos prisioneiros, transpondo a referência para o campo de concentração do Tarrafal de São Nicolau, lugar que recebeu a primeira experiência de deportação em massa de presos políticos, em 1931. Estas duas localidades homónimas dificultariam as informações referentes aos presos e funcionariam como forma de dissuadir os familiares a procurarem os prisioneiros.
A "frigideira", prisão construída após a tentativa de fuga coletiva realizada a 2 de agosto de 1937, foi o maior instrumento de castigo. As dimensões reduzidas da cela, sem janelas, à semelhança de uma caixa-forte, construída longe de qualquer ponto que pudesse proporcionar sombra. Os presos na "frigideira" tinham de suportar temperaturas que atingiam os 50 graus, ar denso devido à falta de renovação do ar e aos dejetos dos reclusos., dieta à base de água e pão, falta de assistência médica, doenças do foro intestinal e psíquico, impossibilidade de efetuar a higiene pessoal e o isolamento em cela que poderia ascender aos 70 dias. Tais condições pioravam, quando se aglomeravam vários reclusos num espaço tão diminuto.
Os presos eram castigados na "frigideira" por diversos motivos, sendo o mais comum os protestos contra a redução da comida e a recusa em trabalhar. Aliás, o trabalho forçado constituiu outra marca da política repressiva que se realizava aqui.
Na segunda fase de funcionamento do campo, a "frigideira" foi substituída pela "Holandinha", cela mais discreta e dissimulada dentro de uma arrecadação. Mas a sua função permanece: tentar aniquilar a vontade de resistência dos presos.
Na cozinha, os fogões eram construídos com tijolos. As loiças ficavam no chão, ao pó, e muitas vezes eram usadas e reutilizadas sem serem lavadas. Muitas vezes, as refeições eram condicionadas com produtos detorados, principalmente, as carnes. Inúmeras vezes, os presos encontraram casos de triquinose na carne de porco. Com frequência, eram servidos de forma dissimulada de carne de corvo, que abundava no local. A comida era sempre a mesma e intragável, de modo que os presos tapavam as narinas com bolas de pão para conseguirem ingeri-la.
A falta de assistência médica era uma das marcas principais deste campo. No início, o diretor não atendia às súplicas dos presos que adoeciam alegando falta de de verbas para dietas e medicamentos. Perante a frequência das doenças, foi enviado um médico para o campo, chamado de "Tralheira" pelos presos, já que as suas ações contribuíram bastante para o agravamento das condições de sobrevivência. O médico recusava-se a ferver a água insalubre que vinha da fonte a uns 700 m, aprovava o estado de deterioração das magras rações distribuídas aos presos, dava cobertura aos trabalhos forçados e aos castigos na "frigideira", negava a medicação, desviava os remédios enviados pelas famílias, participava diretamente, de arma na mão, na repressão aos presos, insultando ou dirigindo-lhes frases jocosas.
A enfermaria, inicialmente de madeira, era de dimensões reduzidas para albergar os muitos doentes e não apresentava condições de higiene, pois o soalho nunca era lavado, o mau cheiro era uma presença constante e os ratos e as baratas infestavam o local.
Eram permitidos apenas livros que fossem de caráter didático e, mesmo assim, após uma censura eliminatória das partes que tratassem de assuntos políticos, sociais, económicos ou assuntos contrários ao Estado Novo. Os presos conseguiram circular clandestinamente, no interior do campo, alguns livros considerados subversivos; iniciaram um sistema de ensino, em que os mais aptos ajudavam os que tinha dificuldades e, para escrever, utilizavam papéis dos sacos de cimento que os presos conseguiam trazer às escondidas para o campo, quando regressavam das brigadas. O espaço da biblioteca também funcionou como capela.
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